A COBRA DAS DUAS CABEÇAS
Por César A. Bustos
Tradução: Francisco A. Pesce
A antiga tradição lhe havia assinado um estranho propósito, tão estranho como sua aparência. Era um planalto de forma triangular, sem nada de vegetação, com um solo de rocha brilhante, que visto desde o alto semelhava-se a um rubi encravado na selva tropical. Ali não faziam ninho as aves, não caçavam os predadores, os réptis não se atreviam. Não distava muito de Navadvipa, o povo natal de Caitanya, porem seus habitantes também lhe esquivavam.
Jayadratha Kashmiri não, ele passava horas, dias, semanas inteiras meditando na solidão da paragem. Ninguém o seguia. Para sua gente era um sannyasa, havia renunciado às exigências mundanas para dedicar-se só à vida espiritual. Quando baixava, alguns sentavam-se ao seu redor para escutar suas lições; era um dos poucos que manejavam o alfabeto devanagari, a escritura dos devas, ou deuses, esse das treze vogais e trinta e cinco consoantes.
Certa vez, no centro do grande triangulo, encontrou uma pequena mancha negra e soube que tinha algum significado. A partir de esse momento, sempre foi visto sentado ao seu lado, observando-a crescer, como quem observa nascer o sol. As chuvas não a apagavam; pelo contrario, cada dia se afiançava mais e cobrava forma: era como um desenho a pena de uma serpente de duas cabeças. Quando por fim alcançou o tamanho de uma maçã, Jayadratha soube que a hora havia chegado. Lentamente estendeu-se sobre ela, de maneira que estivesse à altura do seu peito e ficou assim, contemplando o céu.
Ao outro dia desceu ao povoado e foi recebido com regozijo. Seu semblante havia mudado; dentro de sua parcimônia se veia mais alegre que de costume, seus olhos tinham um brilho diferente. A partir de então, seus ensinamentos foram mais ricas que nunca, sua palavra mais sonora. Contou mil historias dos povos primitivos; narrou as origens do universo; abundaram as parábolas; até as crianças menores deixaram de brincar para lhe acompanhar. Respondeu mil perguntas menos uma, que ninguém atreveu-se a formular: aquela sobre a ração de tão estranho tatuagem no peito. Jamais mencionou palavra sobre aquilo.
Não era comum na sua cultura, porem logo habituaram-se a ver em seu mestre esse desenho com forma de serpente de duas cabeças. O associaram com as nagas, aquelas que mediam entre os deuses e os humanos, tal como o faz o arco íris. Desde aquele dia, o mestre ficou a viver com eles; já não subia ao planalto, já não fugia do burburinho da sua gente. E a voz se espalhou. De povos vizinhos começaram a vir a escutar suas lições, a desfrutar suas historias; os viajantes detinham-se de propósito. Até de Calcutá chegou meses depois um ancião, para ver ao sannyasa, quando a tatuagem já havia alcançado o tamanho do seu torso. Para entonces as duas cabeças da serpente já estavam na altura de suas clavículas, e parte do rabo enroscado perdia-se baixo da cintura.
Assim transcorreu o tempo e as pernas e os braços começaram a luzir a cor da tinta, com traços cada vez mais apartados. La barbilla, logo o rosto e os joelhos, depois os pés e as costas, todo tornou-se violáceo, quase preto. O sannyasa não demonstrou temor em nenhum momento; porem ao final seu semblante voltou a cambiar. Y sua gente o notou. Outra vez o silencio, outra vez longas ausências; todos sentiam falta das sus historias. A última vez que o viram já não conservava nem um pedaço de sua pele com a cor original. Retirou-se em silencio ao planalto triangular; ninguém atreviou-se a seguir-o. No entanto a tradição conta que uma vez ali, estendeu-se no centro e ficou contemplando o céu. E a pedra começou a tingir-se ao seu redor.
Tempo depois, desde o alto do Vaikuntha, os devas repararam nesse planalto triangular e em seu desenho: uma serpente de duas cabeças que a abraçava quase por completo. Y em seu ventre descobriram uma diminuta figura humana. Entenderam a mensagem.
César A. Bustos
29/11/2000